Josef Klicka - "L´orgue romantique tchèque " (2006)
ectoplasma
Lugar de Miguel Salgado e Miguelsalgado. Lugar onde se fala daquilo que não se fala.
quarta-feira, 2 de julho de 2025
terça-feira, 13 de maio de 2025
Georg Heym - "E os cornos do verão emudeceram..."
Deixo aqui mais um poema do mesmo livro do post anterior, ou seja, da antologia poética sobre o expressionismo alemão, editora Ática, e com tradução de João Barrento. Georg Heym nasceu em 1887 e morreu em 1912. "E os cornos do verão emudeceram..." foi escrito em 1911.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Alfred Lichtenstein - "A caminho do manicómio"
“A caminho do manicómio”, texto, poema, do escritor alemão Alfred Lichtenstein (1889 -1914) terá sido escrito em 1912 e foi publicado postumamente em 1962, juntamente com outros poemas, num livro com o título "Gesammelte Gedicht" (em portugês creio que será qualquer coisa como "Poesia Reunida"). O autor, creio, não publicou nada em vida, pelo menos em livro. Morreu na frente de batalha durante a primeira guerra mundial.
Em ruidosas linhas as gordas carripanas
Passam por casas que parecem sepulturas.
Acocoram-se às esquinas carroças de bananas.
Um pouco de esterco alegra crianças duras.
Bestas humanas vão passando alienadas
No cenário de miséria da rua viva e baça.
Brotam trabalhadores de portas arruinadas.
Tranquilo, homem cansado atravessa uma praça.
Arrasta-se um caixão atrás de uma parelha,
Mole como verme, rua abaixo sem ruído.
E a cobrir tudo isto, farrapagem velha –
O céu… com ar paganizado e sem sentido.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Mário Dias Ramos - "O Logro" (1999)
Na realidade, esta obra do escritor Mário Dias Ramos foi editada pela primeira vez em 1963 e esta publicação mais recente é uma segunda edição, uma edição especial pela editora Dafnis (que creio já não existir) e com texturas, imagens, fotografias, de Miguel Louro, num estilo bem escuro, naturalmente em sintonia com o carácter do texto. Aliás, é até estranho que o livro tenha escapado incólume pela censura da época. Pelo menos não vi nada em sentido contrário.
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“…caímos num poço devasso e profundo, negro e repulsivo. O empregado traz-nos um café tão preto como a sua existência servil e angustiada. À nossa volta caras hostis afundam-se em jornais abertos com colunas de notícias que mentem num esgar de compromisso pactuante. O fiscal observa a ordem do serviço. Uma multidão entra e sai, apressadamente, com um ar indefinido no rosto. Intelectuais dissolutos olham-se na penumbra de um horizonte que se fechou hermeticamente. Um sol que brilha falso e não aquece os homens, envolve este ambiente de insalubridade mental e irreconciliação humana. Entretanto, nada sucede. Os homens nascem e morrem e, de um estado ao outro, a velocidade é a mesma do som. Nascem e morrem sem dar quase por isso…”
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
XIV
que faz zapping sem encontrar imagens às quais se fixar
Alice ao espelho e do outro lado não há nada
e no entanto Galileu estende um lençol no caixão
giramos velhos tristes à volta do sol infantil com cara contente
a revolução acaba
o sonho em Lavoisier escondido na bouça louca
caímos tortos na banheira pequena onde Marat esgadanha
somos Melusinas a esconder deficiências
a água que segue suja pelos andares abaixo
o ouvido na canção monocórdica vinda do andar acima
Ícaros em queda livre desde o nascimento
para o fantoche alinhado na rocha dos Torajas
Krakatoa expele tripas doces
Vasco da Gama mutila o sal da goécia
a madeira no convés corada
respiramos maresias repletas de escravos em cadeiras giratórias
para atirar borda fora O navio negreiro de Turner
desaparecer na mesma névoa que engole o Graal
Nietzsche dinamita-se crucificado
está o pensamento na mesma névoa que engole Avalon
o Génio da Lâmpada não pontapeia Mordred
o Corno de Amalteia não cai na nossa varanda
pedalamos como pulgas de Pan-Gu para o pêlo de ratos sem encosto
enquanto Aton bate a punheta da vida
morrer a cair na solidão destas esquinas erguidas por Chirico
caminhar na praça onde a pomba da paz caga no âmago dos mortos.
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Music In Low Frequencies - "Catharsis" (2023)
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
Hilda Doolittle - "Eurídice"
Em 2022 havia colocado aqui um texto da autora Hilda Doolittle (1886 - 1961), e agora lembrei-me de colocar um outro, desta vez a parte III do poema "Eurídice" (o texto original tem 7 partes e foi publicado em 1917). Hilda Doolittle assinava com o pseudónimo H. D.
Açafrão das margens da terra,
açafrão bravo que se reclinou
sobre a acerada extremidade da terra,
todas as flores que laceram a terra,
todas, todas as flores se perderam;
tudo está perdido,
tudo está riscado de negro,
negro sobre negro
e pior que negro,
essa descolorida luz.
H. D., do poema Eurídice (tradução de Filipe Jarro)
sexta-feira, 26 de julho de 2024
Elizabeth Bathory:
A noite são peles mortas como vampiros secos: de dia magoo-me nos fios de luz. Nunca rezei para que a parede fique em coma mas é esse o meu sonho. Hoje faço 1000 anos: amanhã 1001. Seguro uma balada fúnebre com os caninos domesticados. Há um murmúrio que castiga, uma tigela prateada que é desespero, como levantar-me e andar para trás e para a frente com piolhos sem sair do sítio: quando caio fico a ocupar a prisão toda. Queria mais sono e menos cheiro a excremento: a que distância está o meu caixão? Não atravesso as paredes no sono, nem da primeira vez em que andei de bicicleta vi o vómito nos atacadores da minha mãe: tenho saudades de ter alguém que me tire os piolhos. Quem se lava na banheira sai de lá com outro sangue, se saísse daqui queria uma limousine preta à minha espera: tenho ossos claramente paralíticos. Já nem vou aos cemitérios: nem atiro o peso do cadáver pela ribanceira. Quantas rugas ganhei desde que aqui estou? Estes braços ainda querem secretamente pegar em bebés, mas quem só tem parede à volta não se pode levantar a meio do pesadelo para ir ao parque: vou contar as estacas que revestem as paredes e deixo de buscar com os dedos algo de novo na cara: daqui a bocado vou ter as escleróticas vermelhas, mais um bocado e a luz cega: ficar sem saber o que é noite, o que é dia. Estas paredes permanecem: amplificam a casa do terror. Quantas rugas ganhei desde que aqui estou?
Miguelsalgado, AQUERONTE
sexta-feira, 5 de julho de 2024
terça-feira, 28 de maio de 2024
António Ferreira - "O Comboio de Lúcifer" (1997)
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Rezn - "Chaotic Divine" (2020)
por entre os escombros.
Um deserto, um fio de água
dentro da boca do homem,
um pão que brilha no solo
entre o fogo e as pedras
tatuadas de rugas e silêncio.
no caos da tua noite. Um caminho
ainda verde, pulverizado
por entre os escombros.
terça-feira, 19 de março de 2024
Sebastião Alba - "Albas" (2003)
Livro que reúne vários textos (cartas, poemas, pensamentos,…) dispersos (a maior parte do que escreveu não foi publicado em vida), escritos, muitos deles, creio, numa fase em que Sebastião Alba (1940 - 2000) já vivia como sem-abrigo. O livro inclui também manuscritos, fotografias e uma importante introdução sobre a vida e obra do autor.
(editora: quasi edições)
terça-feira, 6 de fevereiro de 2024
Henri Roorda - "O Meu Suicídio" (1993)
Publicado originalmente em 1925, com o título “Mon Suicide”, esta obra do escritor suíço Henri Roorda (1870-1925) é uma reflexão, em larga medida uma crítica, da vida humana, da vida humana em sociedade, um olhar, irónico, mordaz, necessariamente dramático, sobre si próprio, um balanço de vida, uma explicação para a via suicida.
Mais recentemente, em 2020, saiu um nova edição pela editora Snob
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Não temo o que me aconteça depois, porque tenho fé: sei que não vou comparecer diante do Juiz Supremo. Só na terra é que há «tribunais cómicos».
Não obstante, irei comover-me. Para estar mais à vontade, vou beber uma meia garrafa de Porto velho.
Se calhar vou falhar. Se as leis fossem feitas por homens caridosos, facilitava-se o suicídio aos que querem ir.
sexta-feira, 5 de janeiro de 2024
terça-feira, 5 de dezembro de 2023
António Amaral Tavares - "Os Nomes dos Pássaros" (2017)
Vi fantásticas asas necrófagas a fazerem aqui o ninho.
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dos pássaros ou são poucos
os que conheço.
A luz concreta dos nomes
torna os pássaros mais reais
encerra-os no muro da palavra.
Verdadeiramente retiro-me
entre o nome e a surdez
e chamo pássaro a todas
as criaturas voadoras
que a cru manuseio no tronco
e que só identifico como tal quando
já mortas ou moribundas
como sempre foi.
ANTÓNIO AMARAL TAVARES, Os Nomes Dos Pássaros
segunda-feira, 30 de outubro de 2023
Maria do Sameiro Barroso - "Luna Visibilis"
"Luna Visibilis" é um texto (poema) da escritora portuguesa Maria do Sameiro Barroso (n. 1951). Faz parte do livro «As Vindimas da Noite», publicado em 2008.
LUNA VISIBILIS
e estrelas que se espalham,
nas suas paisagens de coros invisíveis.
Na geleia do mar, na sua placenta obscura,
nos limos viscosos, há sítios onde os rios se banham,
sementes que deslizam, entre sons que nada dizem
e letras que se bifurcam,
abrigando a montanha, a casa, os candelabros,
o fogo flutuando, impaciente,
o rosto procurando o passado , o presente,
na miragem de cristais fosforescentes.
Nas dunas fendidas, lâmpadas de anil evocam o sopro,
a chama calcinada, a memória da neve.
Nos óvulos verdes, há vagens, alfarrobas,
prados infinitos, rebanhos que guardam o medo.
Em todas as respostas, há arcos leves, árvores
odorosas, sombras que respiram,
e dedos moldando os troncos, os rios e o coração,
aberto no fragor sincopado que lavra
a inquietude, o hermético lume, o ardor
que desvenda, nos seus interstícios salgados,
a espuma, a solidão, o vento roxo.
terça-feira, 19 de setembro de 2023
Dino Campana - "Cantos Órficos" (2021)
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Ouço novamente o prelúdio desafinado das rudes cordas sob o arco de violino do eléctrico dominical. Os pequenos dados brancos sorriem sobre a costa, formam um círculo como uma dentadura, entre o fétido odor de alcatrão e de carvão misturado com o nauseante odor do infinito. Fumam os barcos a vapor nas docas desoladas. Domingo. Pelo porto cheio de carcaças as lentas fileiras humanas, formigas do enorme ossário. Enquanto entre as tenazes do cais estremece um rio que foge, taciturno cheio de soluços calados, foge veloz em direcção à eternidade do mar que se entretém e conspira lá em baixo para romper a linha do horizonte.
DINO CAMPANA, Cantos Órficos, (tradução de Tomás Sottomayor)
sexta-feira, 28 de julho de 2023
XIII
Aquele passa inválido para sempre
como se tivesse sido lobotomizado por deus
do corredor C sai alguém para uma dor gigante
como o caixão de Robert Wadlow
daqui já ninguém vai para a terra dos Hiperbóreos
onde se vivia mais que um tubarão-da-gronelândia
dos predadores com espinhas que comem o juro
arrotar a Morte teimosa em Atahualpa
os golfinhos aterrorizados na baía infeliz em Taiji
este oceano é uma enorme garrafa de xarope de groselha
grunhidos de matadouro correm como bolas de snooker
cair num buraco com Endríaco no Santo Ofício
a esplanada é o garrote antes do fogo
Íblis segura a bandeja em forma de ampulheta
sai mais um torturado para o prato de Zeus
deixar o mamífero atolado no próprio excremento até ao fim
descemos o Vesúvio de mão dada com Plínio de mãos na cabeça
surpreendidos pela Morte às cotoveladas
os lóbulos às silvas pelo Stuka alarmista
Marx atingido por um Domovoi de ficar por casa
corpos como iogurte de pedaços
somos Dorian Gray a apodrecer em hipocondria
neste susto de Morte há Górgonas na fotografia Kirlian
um exército interminável de empedernidos
ficamos como os soldados em fila indiana para Shi Huangdi
atirados à mortandade num outro mundo como este
toma o veneno dos ratos Tchaikovsky
leva um tiro no córtex Métis
para a aula com leite mártir na mochila
a inocência sob um fundo negro de Caravaggio
foge com vontade de morrer
corre à frente dos robots Actéon
cai Gomorrense às balas de deus
para a Cruzada criança
para a Morte e a servidão
como potros selvagens retirados às mães.
Miguelsalgado, AQUERONTE
quarta-feira, 5 de julho de 2023
Sócrates:
A dose letal caiu aqui: chegou até aqui não sei como: veio até aqui não sei donde. Poderei ainda atirar este veneno para longe mesmo estando já em mim? Pergunto-me para que lado vou cair quando cair no último acto: cairei para lado algum? A quem estará destinada a infelicidade de lavar este morto detestado? Só sei é que nos últimos tempos só apanho as ondas sonoras dos presos. Questiono os deuses e não há respostas: ficam à distância, mais quietos que uma estátua de Fídias. Sou obrigado a desligar-me: uma vida sem a minha música é uma vida que não vale a pena ser vivida.
Miguelsalgado, AQUERONTE
segunda-feira, 12 de junho de 2023
Before The Rain - "Frail" (2011)
quarta-feira, 24 de maio de 2023
XII
entorpecemos como os gigantes de Papini no jardim
onde a muralha de Camelot se desfaz ao suspiro
extinto no Cristo vermelho por Lovis Corinth
religioso no diário louco em Gogol
Penitência de Canossa que se impõe
pómulos sem algodão
arroz como inquietas suricatas no Kalahari
o fundo do tacho raspado como os lares desta República Platónica
presos a uma Atlântida afundada
esta é a água que se agita sem sentido
depressão nos charcos de suor em Arcádia
o amrita a escorregar das garras que Paracelso encravou
salta Hanuman para o clube dos poetas mortos
Miguel de Molinos nos membros agarrados à Morte inquieta
abraço venenoso para um Laocoonte que vê a cilada na existência
enquanto Goya esvai fuzilamentos pelas orelhas de Maio
onde o calor é mais intenso perto da luz que ilumina os mortos.
quarta-feira, 10 de maio de 2023
Rosa Luxemburgo:
Sou com algemas: sacudo braços nos braços de empregados que magoam. Estou sem palco: apelar à paz é lançar a guerra. Ombros largos dissolvidos pela prisão umbrosa, clavículas com arte a dispersarem-se como migalhas sopradas: pessoas de partido igual afastam-se porque sim. Nunca mais a mão passará no pêlo do gato sossegado: para onde vou de mordaça? Querem o meu suor nas escadas como se não mancasse. Estou sem protesto: as pulsações a morrer às mãos de empregados que magoam. Sou para a necrópole: o que ainda podia ser já não será. Matamo-nos uns aos outros como anjos. A paz é sempre podre. Onde caio é feio: bonecas sem pernas e lodo poluído como manta.
Miguelsalgado, AQUERONTE
quarta-feira, 26 de abril de 2023
Miguelsalgado - "AQUERONTE" (2023)
(editora: artelogy)
quarta-feira, 15 de março de 2023
Son Frère ("O Seu Irmão") - Patrice Chéreau (2003)
GOETHE , Werther (tradução de João Teodoro Monteiro)
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
Marosa di Giorgio - "Passagens de um Memorial" (2022)
"Passagens de um Memorial" é uma antologia, uma escolha de textos que abarca a totalidade da obra poética da escritora uruguaia Marosa di Giorgio (1932-2004), uma obra que se move num universo muito próprio, muito marcado pela ligação à terra, à natureza e sua obscuridade.
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MAROSA DI GIORGIO, Passagens de um Memorial (tradução de Miguel Filipe Mochila)
(Editora: Cutelo Edições)
quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
Ancestors - "Whispers", "First Light" e "Bounty of age"
Os 3 títulos em cima são composições da banda estadunidense Ancestors. As primeiras duas fazem parte do álbum «In Dreams and Time» (2012). A outra do álbum «Of Sound Mind» (2009)
TEIXEIRA DE PASCOAES O pobre tolo
quarta-feira, 16 de novembro de 2022
segunda-feira, 3 de outubro de 2022
Colette Peignot - Eu não habitava a vida mas sim a morte
Colette Peignot (1903 - 1938) não publicou nada em vida. Em 1939 sai no entanto uma edição que inclui vários textos (poemas, cartas, pensamentos) da autora, uma obra à qual se deu o título de «O Sagrado». É desse livro que se extrai o texto para este blog.
Tão longe quanto me lembro
os cadáveres erguiam-se diante de mim:
«Bem podes desviar-te, esconder-te, negar…
Tu és da família e serás dos nossos esta noite.»
E discorriam, meigos, amáveis e sardónicos
ou talvez,
à imagem desse cristo, o eterno humilhado, o insano carrasco
estendiam-me os braços.
Do Ocidente ao Oriente
de país em país
de cidade em cidade
eu caminhava por entre as covas.
Cedo fiquei sem chão.
Fosse relvado ou calçada
eu flutuava
suspensa entre o céu e a terra
entre o tecto e o soalho.
Meus olhos doídos e revirados
apresentavam ao mundo seus lóbulos fibrosos
minhas mãos, ganchorras mutiladas
transportavam uma herança insana.
Cavalgava as nuvens
com ares de louca desgrenhada
ou de mendiga de amizade.
E sentindo-me um tanto monstra
já não distinguia os humanos
que entanto amava.
Viram-me aterrar
no céu de Diorama
onde congelada atá aos osso
petrificava lentamente
até me tornar
um perfeito ornamento.
COLETTE PEIGNOT, O Sagrado (tradução de André Tavares Marçal)
terça-feira, 6 de setembro de 2022
Hilda Doolittle - a casinha
O texto que se segue, sem título, faz parte do livro «Notas sobre o pensamento e a visão», publicado originalmente em 1919 com o título «Notes on Thought and Vision». Hilda Doolittle (1886-1961) assinava com o pseudónimo H. D.
Cada casinha confortável acoita uma alminha confortável – e uma parede ao fundo impede completamente qualquer comunicação com o mundo além.
A maior preocupação do homem é aquecer a sua casinha e fortalecer a sua pequena parede.
HILDA DOOLITTLE, Notas sobre o pensamento e a visão (tradução de Leonor Castro Nunes)
terça-feira, 12 de julho de 2022
JOSÉ
És sem graça. Trazes túnicas para não tirar ao deitar.
És sem graça. Os percevejos pousam livremente no peito do teu pé.
Na banca do talho reparas nas carnes mortas.
Repara também como as moscas só param demoradamente nos pedaços parados.
Não precisas de olhar para o lado. Não há nada a dar socorro à tua ereção.
Exalas monotoneísmo dentro do teu eu.
Já vi um Hematófago enorme a trepar a parede do teu quarto enquanto dormias.
Queres perder todo o sangue sem dares por isso?
Miguelsalgado, Escuro
quarta-feira, 29 de junho de 2022
terça-feira, 24 de maio de 2022
"Los Santos Inocentes" - Mario Camus (1984)
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
DANIEL FARIA , Homens que são como lugares mal situados (excerto de um texto sem título)
terça-feira, 26 de abril de 2022
Vladimir Vlasov - "Improvisação para violoncelo e orquestra"
O compositor:
Vladimir Vlasov (1903-1986), compositor russo, estudou violino no conservatório de Moscovo e foi também maestro, professor, etnomusicólogo e director artístico. Compôs maioritariamente música vocal.
"Improvisação para violoncelo e orquestra"
"Estava a passar cá fora com dois amigos, e o Sol começava a pôr-se – de repente o céu ficou vermelho, cor de sangue – Parei, sentia-me exausto e apoiei-me a uma cerca – havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul-escuro e da cidade – os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei, de pé, a tremer de medo – e senti um grito infindável a atravessar a Natureza."
EDVARD MUNCH
terça-feira, 15 de março de 2022
Joaquim Pessoa - "Fly" (1983)
Voo para um arco-íris engolido pela escuridão.
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JOAQUIM PESSOA, Fly
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
terça-feira, 21 de dezembro de 2021
quarta-feira, 17 de novembro de 2021
Dino Campana - "Sonho de Prisão"
Dino Campana (1885 -1932), escritor italiano, publicou um único livro em vida: «Canti Orfici» (1914), em português «Cantos Órficos». "Sonho de Prisão" é um dos textos que fazem parte dessa publicação.
terça-feira, 14 de setembro de 2021
The Wounded - "Garland", "Grace, Murder, Divine" e "We pass our bridal days"
Os 3 títulos acima são composições da banda holandesa The Wounded. As duas primeiras pertencem ao álbum «Monument» (2002) e a outra ao álbum «The Art of Grief» (2000).
sexta-feira, 9 de julho de 2021
sexta-feira, 18 de junho de 2021
João Camilo - "Como o vento"
"Como o vento" é um texto do escritor português João Camilo (n. 1943). Pertence ao livro «A mais nobre das artes», publicado em 1991.
Um ano novo. Tocaram os sinos
da minha aldeia à meia-noite?
O eco de bronze atingiu as margens da ribeira,
dança ainda sobre a sombra dos pinhais.
Um dia a torre da igreja cairá, o sino também.
E estaremos todos mortos, ninguém saberá que existimos.
Passámos como o vento que ninguém vê, nem sequer
deixámos pegadas no caminho que leva ao cemitério.
JOÃO CAMILO, A mais nobre das artes
sexta-feira, 7 de maio de 2021
terça-feira, 30 de março de 2021
VIDRO DUPLO
Perseguiu um homem durante 5 minutos e ao fim desse tempo, sem dizer nada, espetou uma faca no nó da gravata do homem. Na faca do crime só havia sumo de laranja.
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Antes de ir para a cama punha a cara mais séria que tinha e dizia: vou de viagem e não sei se regresso.
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Disse-lhe Bom dia. Ela respondeu Bom dia. Entraram os dois no elevador. Primeiro ela. Depois ele. Ele fixou os olhos numa parte da porta do elevador. Ela fixou os olhos nou-tra parte da porta do elevador. Ambos olhavam o movimento aparente das portas e pa-redes enquanto esperavam a sua vez de sair.
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O homem que foi salvo ontem do mar morreu hoje. Afogou-se na banheira.
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Estava sentado sozinho à mesa da esplanada. Um estranho aproximou-se dele e pergun-tou: posso-me sentar? Ele ficou surpreso e disse que sim embora desejasse ter dito que não. O estranho sacou de um baralho de cartas e disse: vamos jogar?
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Era alguém que só conseguia cagar se fosse à frente dos outros. Era alguém muito especial.
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Foi o vento que fez bater a porta?
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Estava de costas. Alguém gritou-lhe CUIDADO. Virou-se e ficou estático.
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Valem muito mais dois pássaros a voar do que um na mão.
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Foi atacado por parentes e amigos. Se sobreviver vai ficar dependente de parentes e amigos.
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Terão sido 29, e não 30, as facadas que o levaram à morte. A facada 30 foi um erro de observação.
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
Luísa Brehm - não se pode escrever o mar
Aqui fica um texto, sem título, da escritora portuguesa Luísa Brehm (n. 1957), retirado do livro «Da Melancolia», publicado em 1987.
não se pode escrever o mar.