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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Colette Peignot - Eu não habitava a vida mas sim a morte


Colette Peignot (1903 - 1938) não publicou nada em vida. Em 1939 sai no entanto uma edição que inclui vários textos (poemas, cartas, pensamentos) da autora, uma obra à qual se deu o título de «O Sagrado». É desse livro que se extrai o texto para este blog.




… Eu não habitava a vida mas sim a morte.
Tão longe quanto me lembro
os cadáveres erguiam-se diante de mim:
«Bem podes desviar-te, esconder-te, negar…
Tu és da família e serás dos nossos esta noite.»
E discorriam, meigos, amáveis e sardónicos
ou talvez,
à imagem desse cristo, o eterno humilhado, o insano carrasco
estendiam-me os braços.
Do Ocidente ao Oriente
de país em país
de cidade em cidade
eu caminhava por entre as covas.
Cedo fiquei sem chão.
Fosse relvado ou calçada
eu flutuava
suspensa entre o céu e a terra
entre o tecto e o soalho.
Meus olhos doídos e revirados
apresentavam ao mundo seus lóbulos fibrosos
minhas mãos, ganchorras mutiladas
transportavam uma herança insana.
Cavalgava as nuvens
com ares de louca desgrenhada
ou de mendiga de amizade.
E sentindo-me um tanto monstra
já não distinguia os humanos
que entanto amava.
Viram-me aterrar
no céu de Diorama
onde congelada atá aos osso
petrificava lentamente
até me tornar
um perfeito ornamento.



COLETTE PEIGNOT, O Sagrado (tradução de André Tavares Marçal)