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terça-feira, 30 de março de 2021


 VIDRO DUPLO


Perseguiu um homem durante 5 minutos e ao fim desse tempo, sem dizer nada, espetou uma faca no nó da gravata do homem. Na faca do crime só havia sumo de laranja.

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Antes de ir para a cama punha a cara mais séria que tinha e dizia: vou de viagem e não sei se regresso.

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Disse-lhe Bom dia. Ela respondeu Bom dia. Entraram os dois no elevador. Primeiro ela. Depois ele. Ele fixou os olhos numa parte da porta do elevador. Ela fixou os olhos nou-tra parte da porta do elevador. Ambos olhavam o movimento aparente das portas e pa-redes enquanto esperavam a sua vez de sair.

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O homem que foi salvo ontem do mar morreu hoje. Afogou-se na banheira.

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Estava sentado sozinho à mesa da esplanada. Um estranho aproximou-se dele e pergun-tou: posso-me sentar? Ele ficou surpreso e disse que sim embora desejasse ter dito que não. O estranho sacou de um baralho de cartas e disse: vamos jogar? 

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Era alguém que só conseguia cagar se fosse à frente dos outros. Era alguém muito especial.

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Foi o vento que fez bater a porta?

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Estava de costas. Alguém gritou-lhe CUIDADO. Virou-se e ficou estático.

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Valem muito mais dois pássaros a voar do que um na mão.

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Foi atacado por parentes e amigos. Se sobreviver vai ficar dependente de parentes e amigos.

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Terão sido 29, e não 30, as facadas que o levaram à morte. A facada 30 foi um erro de observação.



Miguelsalgado, vidro duplo





Nota: este texto (que também dá nome ao livro) compõe-se de um conjunto de pequenos textos (perto de uma centena), por vezes uma única frase. Resolvi pôr aqui estes onze.