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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

 Morgion - "Solinari" (1999)








Deus teve medo às trevas e gritou! Aquele grito, de tão intenso e doloroso, incendiou-se! Foi o primeiro raio de sol. O sol é o medo às trevas, um grito incandescente de terror! A aurora é apenas um gemido…



TEIXEIRA DE PASCOAES, O Pobre Tolo







quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Dino Campana -  "Sonho de Prisão"


Dino Campana (1885 -1932), escritor italiano, publicou um único livro em vida: «Canti Orfici» (1914), em português «Cantos Órficos». "Sonho de Prisão" é um dos textos que fazem parte dessa publicação.







SONHO DE PRISÃO


No violeta da noite ouço canções brônzeas. A cela é branca, o catre é branco. A cela é branca, cheia de um rio de vozes que morrem nos angélicos berços, das vozes angélicas brônzeas está cheia a cela branca. Silêncio: o violeta da noite: em arabescos através das grades brancas o azul escuro do sono. Penso na Anika: estrelas desertas nas montanhas nevadas: estradas brancas desertas: e depois igrejas de mármore brancas: pelas estradas Anika canta: um bobo de olho infernal guia-a, ele grita. Agora a minha aldeia entre as montanhas. Eu no parapeito do cemitério em frente à estação estou a olhar o deambular preto dos carros, para cima, para baixo. Ainda não é noite; silêncio olhudo de fogo: os carros comem recomem o silêncio preto no deambular da noite. Um comboio: esvazia-se chega em silêncio, parou: a púrpura do comboio morde a noite: do parapeito do cemitério os olhares vermelhos que se esvaziam na noite: e depois tudo, parece-me, se transforma num estrondo: Duma janela em fuga eu? Eu que levanto os braços na luz!! ( o comboio passa-me por baixo com um estrondo de demónio).





DINO CAMPANA, Canti Orfici (Tradução de Ritta Ciotta Neves)


sexta-feira, 22 de outubro de 2021

 "Ellie Parker" - Scott Coffey (2005)







A desilusão ao virar destas esquinas absurdas.



terça-feira, 14 de setembro de 2021

 The Wounded - "Garland", "Grace, Murder, Divine" e "We pass our bridal days"


Os 3 títulos acima são composições da banda holandesa The Wounded.  As duas primeiras pertencem ao álbum «Monument» (2002) e a outra ao álbum «The Art of Grief» (2000).








aqui ninguém ignora 
que os lagos gelam a partir das margens 
e o homem a partir do coração, 

que a luz 
ascende do vazio 
e tudo o que nos resta mais não é 

que um sol sem crédito 
num céu desafectado, 

envolvem-nos as trevas 
os ossos, dir-se-ia 
que a própria morte 
nos serve aqui de pele, como a um morcego.




LUÍS MIGUEL NAVA, Vulcão (do poema "As Trevas")






sexta-feira, 9 de julho de 2021

"Lao Shi" ("Pedra Antiga") - Johnny Ma (2016)





A vida esmagada por uma teia burocrática desumana e inflexível.




sexta-feira, 18 de junho de 2021

 João Camilo - "Como o vento"


"Como o vento" é um texto do escritor português João Camilo (n. 1943).  Pertence ao livro «A mais nobre das artes», publicado em 1991.





COMO O VENTO


Um ano novo. Tocaram os sinos
da minha aldeia à meia-noite?
O eco de bronze atingiu as margens da ribeira,
dança ainda sobre a sombra dos pinhais.
Um dia a torre da igreja cairá, o sino também.
E estaremos todos mortos, ninguém saberá que existimos.
Passámos como o vento que ninguém vê, nem sequer
deixámos pegadas no caminho que leva ao cemitério.




JOÃO CAMILO, A mais nobre das artes


sexta-feira, 7 de maio de 2021

"Talaye Sorkh" ("Sangue e Ouro") - Jafar Panahi (2003)









PRISÃO

Presos à terra
ao nascimento
à solidão dos braços colados ao corpo
resta-nos a morte por companheira
o medo de possuí-la violentá-la
a coragem de 
ocultá-la
dentro de um poço




CASIMIRO DE BRITO, Jardins de guerra

terça-feira, 30 de março de 2021


 VIDRO DUPLO


Perseguiu um homem durante 5 minutos e ao fim desse tempo, sem dizer nada, espetou uma faca no nó da gravata do homem. Na faca do crime só havia sumo de laranja.

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Antes de ir para a cama punha a cara mais séria que tinha e dizia: vou de viagem e não sei se regresso.

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Disse-lhe Bom dia. Ela respondeu Bom dia. Entraram os dois no elevador. Primeiro ela. Depois ele. Ele fixou os olhos numa parte da porta do elevador. Ela fixou os olhos nou-tra parte da porta do elevador. Ambos olhavam o movimento aparente das portas e pa-redes enquanto esperavam a sua vez de sair.

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O homem que foi salvo ontem do mar morreu hoje. Afogou-se na banheira.

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Estava sentado sozinho à mesa da esplanada. Um estranho aproximou-se dele e pergun-tou: posso-me sentar? Ele ficou surpreso e disse que sim embora desejasse ter dito que não. O estranho sacou de um baralho de cartas e disse: vamos jogar? 

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Era alguém que só conseguia cagar se fosse à frente dos outros. Era alguém muito especial.

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Foi o vento que fez bater a porta?

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Estava de costas. Alguém gritou-lhe CUIDADO. Virou-se e ficou estático.

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Valem muito mais dois pássaros a voar do que um na mão.

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Foi atacado por parentes e amigos. Se sobreviver vai ficar dependente de parentes e amigos.

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Terão sido 29, e não 30, as facadas que o levaram à morte. A facada 30 foi um erro de observação.



Miguelsalgado, vidro duplo





Nota: este texto (que também dá nome ao livro) compõe-se de um conjunto de pequenos textos (perto de uma centena), por vezes uma única frase. Resolvi pôr aqui estes onze.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

 Luísa Brehm - não se pode escrever o mar


Aqui fica um texto, sem título, da escritora portuguesa Luísa Brehm (n. 1957), retirado do livro «Da Melancolia», publicado em 1987.








Por entre as algas submergem encantadas as gaivotas nas vagas frias e cremosas, atentas, silenciosas, que esperam? para onde fitam os olhos laterais? fecham-se as pupilas do tempo. levanta-se o voo à mais pequena miragem. na névoa do sonho transforma-se a paisagem. apaga-se tudo com um simples gesto. ou com um bater de asa. 
não se pode escrever o mar.




LUÍSA BREHM, Da Melancolia