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sexta-feira, 2 de novembro de 2018



RESSURREIÇÃO


Estavas a descansar as pernas no banco do cemitério quando um som vindo debaixo da terra te fez levantar. Um cadáver batia na tampa do caixão. E o cadáver ergueu-se do caixão. E dirigiu-se para o exterior do cemitério. E começou a atirar ossos sujos ao ritmo da rua. E ainda hoje vira as costas quando alguém lhe pede para parar.


Quando tentas-te ligar música disseram-te que não se pode ligar música no cemitério. Ainda hoje te dizem que não se pode ligar música no cemitério. E querias bater em quem te diz que não se pode ligar música no cemitério. Mas desequilibras-te com a rajada de vento soprada por palavras de deus apoiadas numa parede sólida. Por estar unida de cima a baixo com sangue sujado entre os espaços vazios.


Resignação no espaço entre os dentes caninos. Trepanação no crânio. O que viste sobrar de um doente foram manchas no tecido. Depois a máquina de lavar apagou-as. Bodega. Degredo. Imprecisão. Dor. E matéria funerária passiva. Eis o Reino.


Abres a porta de casa com um pé-de-cabra. O monge de costas no quadro de C. D. Friedrich desata a correr pela paisagem. A olhar para trás. Para confirmar se está a ser perseguido pelo teu medo.


Estão aí os corpos em maratona sem meta. As formigas que carregam 9471 vezes o seu peso às costas. As pessoas com movimentos perigosos na folha do electrocardiograma. As cabeças debaixo dos secadores individuais. Pétalas mecânicas a crescer no vegetal no vaso.


Está aí o colar sentimental com um preço. Os tapetes para limpar a sujidade antes de entrar. Gente que anda às voltas com pressentimento de abalo. Bichos subterrâneos que passam de passeio para passeio. De sala para sala. Bichos subterrâneos que passam para onde podem.


Estão aí os olhos a fechar. E trazem o sono à tarde que não te pertence. Mordaças em miolos expostos ao ar condicionado. Casulos prestes a rebentar em Negrume cósmico.


Onde se deve guardar a dor sem doer? Aguarda por um som que te diga onde se deve guardar a dor sem doer.


No habitat natural vês a queda de um fio de vómito preso na pétala. Mãos com Parkinson dividem o pão. Desaguas nas caras da secção de necrologia do diário informativo. Há ossadas espalhadas junto aos teus pés magoados. Abraças um suicida morto no princípio do dia. Apontas para os dentes no céu e deixas cair os olhos.
Debaixo da tua máscara sobre a tua máscara sobre a tua máscara sobre a tua máscara há pele translúcida dentro do sepulcro.


Ressuscita-te fantasma, fantasma. 






Miguelsalgado, Escuro