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sexta-feira, 29 de novembro de 2019



ABRAÇO


Houve alguém que entrou com os braços abertos e a pedir que o abraçassem. Houve então uma pessoa que respondeu ao pedido e abraçou-o. Alguém abraçou com força e não queria largar a pessoa. A pessoa começou a sentir-se sufocada e pediu ajuda. Duas pessoas responderam ao pedido e separaram-na de alguém. Alguém queria abraçar outra vez mas as pessoas empurraram-no para fora. Alguém abriu os braços e foi-se embora com eles abertos. A pessoa sufocada recompunha-se. As duas pessoas que a separaram de alguém ainda estavam perto dessa pessoa sufocada. Das que empurraram alguém para fora, uma já estava na posição inicial. As outras regressavam aos poucos.


 
Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 27 de setembro de 2019



OUTRA PERGUNTA 


Morrer triste é a coisa mais triste do mundo, disse. Devíamos morrer todos felizes. De preferência com um sorriso na cara, não acha? A pessoa ao lado, não sabendo o que dizer, não disse nada. E o assunto ficou por ali, sem uma resposta à pergunta.





Miguelsalgado , vidro duplo 

sexta-feira, 13 de setembro de 2019


ATRASO


Aquele que já escorregou num pavimento húmido saiu ontem de casa por volta da hora habitual e chegou 2 minutos atrasado ao trabalho por causa de um camião que ia particularmente devagar e o impediu, durante alguns quilómetros, de andar à velocidade habitual e chegar com a habitual antecedência de 5-10 minutos ao seu posto de trabalho. No entanto, apesar do atraso, ninguém lhe chamou a atenção. No fim, acabou por sair um pouco mais tarde do que os habituais 10-15 minutos, para poder assim compensar o atraso. Por esse motivo, mesmo tentando acelerar mais um pouco o automóvel, acabou por chegar mais tarde que o habitual a casa. Por isso, a mulher, que habitualmente chega sempre depois dele, acabou por chegar mais cedo do que ele. Foi um dia diferente.





Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 23 de agosto de 2019


VOZ


Veio pelas costas, tapou-lhe os olhos com as mãos e perguntou: quem é? Ele não reconheceu a voz e disse: não sei, quem é? Tens de acertar, disse-lhe a voz. Ele então começou a dizer nomes que lhe vinham à cabeça mas a resposta era sempre negativa. Estavam já há algum tempo naquilo quando ele disse: desisto. diz lá quem és? E a voz: tens de adivinhar. E ele: estou farto disto. Queria tirar as mãos da voz da frente dos olhos e não conseguia. Fazia toda a força que tinha para tirar aquelas mãos. E a voz: só quando acertares é que vais poder voltar a ver. Ele começava a desesperar. Debatia-se, suava muito, e as mãos sempre à frente dos olhos, sempre a deixá-lo na escuridão. Na realidade, não só não via, como também não conseguia sair do sítio. Chorava. Berrava: quem é que não me deixa ver nem andar? Implorava: deixa-me ver deixa-me sair daqui. Aos poucos foi-se conformando e já estava bem mais calmo quando finalmente disse: é a Morte. Mas tinha-se enganado outra vez.

 
 
 
 
Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Miguelsalgado - "vidro duplo" (2019)


 
 
 
 
 
SEMENTES
 

De cada vez que deitava as sementes uma boca vinda do interior da terra abria-se e devorava-as. A meio do percurso apercebeu-se disso. Atirou as sementes e no momento em que a boca emergiu lançou uma corda à volta do pescoço da boca e puxou. A criatura saiu toda da terra. Era um homem nu e esquelético, que começou a correr assustado, mas que não foi longe, porque não tinha olhos. O homem das sementes recomeçou o trabalho sabendo que até aí o seu esforço fora em vão.
 
 
 
 
 
(Editora: artelogy)

terça-feira, 16 de julho de 2019

Dreams of Sanity - "Komodia II – The Dream", "Komodia III - The Meeting" e "Time to set the stones"



Os 3 títulos acima correspondem a tantas composições da banda austríaca Dreams of Sanity. As duas primeiras pertencem ao álbum «Komodia» (1997) e a última ao álbum «The Game» (2000).










Dormi um sono profundo,
Acordei numa longa manhã,
Recordei cada sonho
Como se fosse real:
À beira de lagos espelhava-se
Um céu roxo, verde azul branco
Um céu com estrelas
Um céu profundo
De que eu era mandatário
Aqui na terra.
E, como se fosse real,
Cada sonho deixava-me
Cansado de o relembrar
Exausto de o viver
Prostrado ser eu
Nesse sono de cem dias
E de cem noites




MIGUEL BRANDÃO, Maré de Luz… Ressaca Rara
 
 

 
 
 
 
 

sexta-feira, 24 de maio de 2019

António Pedro - Antologia Poética (1998)








Autor multifacetado, a obra poética de António Pedro (1909-1966) permanece, tanto quanto julgo saber, muito pouco divulgada. Esta antologia abarca não só a quase totalidade da obra em livro (ficaram de fora os dois primeiros livros, rejeitados pelo próprio autor), como textos publicados noutros formatos (revistas, jornais,…). Inclui uma ampla introdução biográfica e múltiplas notas complementares.


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IV
 
 
Agora minto como respira um tuberculoso.
 
A verdade deixou-me sem filhos, como uma pedra,
E deu-me um coração para morrer,
A epiderme vibrátil que se deslumbra
A cada táctil assomo,
Para morrer,
Esta ambição de Deus, que me sufoca,
Para morrer,
Esta esperança, esta ansiedade e estas mãos,
Para morrer,
Esta dor cá no fundo (só cá no fundo!)
Para morrer,
Tudo para morrer!
 
Ficou-me a imaginação como o bordão dum cego
E, agora, minto como respira um tuberculoso,
Inutilmente – para morrer.
 
 
 
 
 
ANTÓNIO PEDRO (do poema “Os sete poemas do tédio estéril”)
 
 
 




(Editora: Angelus Novus editora) 

sexta-feira, 12 de abril de 2019

"Atmen" ("Respirar") - Karl Markovics (2011)







Um exorcismo pela proximidade física com a morte.



terça-feira, 12 de março de 2019

Àlex Susanna - "Bosques e Cidades" (1995)

 


 
 
 
Na introdução deste livro, por Rosa Alice Branco, pode-se ler:
 
“A poesia de Àlex Susanna é atravessada pela presença demolidora do tempo. Os seus poemas precipitam-se no nada, no vazio, na inércia, num vertiginoso trajeto do ser ao não-ser, que é a própria morte no seio da vida, o sem-sentido de um universo onde nada vale a pena – na irreversibilidade do tempo escreve-se a «menos-valia» de tudo quanto exista ou venha a existir.”
 
Àlex Susanna é um escritor espanhol nascido em 1957. "Bosques e Cidades" foi originalmente publicado em 1994.



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CONVERSAS NO BOSQUE


Passeamos por bosques que nos excedem
como por dentro de uma catedral,
uma gruta marinha de claridade incerta:
à deriva, caminhos como correntes
levam-nos onde querem
e damos voltas e mais voltas
sem saber onde vamos,
perdidos em nós mesmos,
mas envolvidos na penumbra,
cantos esvoaçantes e cheiros intensos:
todo o património destes grandes bosques.


As nossas conversas de súbito florescem
como esses cantos que sentíamos
embriagados de si mesmos,
e uma certa felicidade, intrusa,
infiltra-se em nós,
mas tudo o que floresce é logo espúrio,
e pouco a pouco sentimos por dentro,
como os seus frutos pesam
e caem, depois, rachados,
nesta terra sempre sombria
que nos mostra claramente
como tudo começa e acaba.




ÀLEX SUSANNA, Bosques e Cidades (tradução colectiva )



 
(Editora: Quetzal Editores)
 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

The Firstborn - "Lions Among Men" (2012)

 
 
 
 
1. Lions Among Men  (08:49)   
2. Without as Within  (09:13)
3. Wantless  (06:02)
4. Vajra Eyes  (07:22)   
5. Eight Flashing Lances  (07:08)   
6. Nothing Attained, Nothing Spoken  (08:54)  
7. Sounds Liberated as Mantra  (07:19) 
  
 
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«É Maya, é o véu da Ilusão, que, ao cobrir os olhos dos mortais, lhes faz ver um mundo que não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho, à radiação do sol sobre a areia, onde, de longe, o viajante crê aperceber uma toalha de água, ou ainda a uma corda atirada por terra, que ele toma por uma serpente.» 
 
 
 
SCHOPENHAUER, O Mundo como Vontade e Representação (tradução de M. F. Sá Correia)





 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Henrique Risques Pereira - "Transparência do Tempo" (2003)








"Transparência do Tempo" é o único livro em português do autor português Henrique Risques Pereira (1930-2003). Curiosamente (ou talvez não) o outro livro dele é em espanhol, publicado antes deste, com o título "Un Gato Partió A La Aventura". "Transparência do Tempo" (editado postumamente) inclui, segundo informação presente no livro, todos os textos dessa edição espanhola + inéditos.



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O vale abre-se à solidão e ao silêncio
e os desfiladeiros descem vertiginosamente para o invisível
e do fundo sobe a bruma leve irreal

A luz coloca sombras que se movem suavemente
e o pássaro negro fende o ar cristalino
e a memória das coisas esvaece com a noite

Calma majestosa erguida a toda a altura
a montanha projecta-se na imensidão do horizonte

Para trás o frenesim da vida dos homens
e o ranger de dentes dos esquecidos da sorte
e o caminhar de braços pendentes esgotados

Uma criança algures acaba de nascer
e a mãe protege-a de presságios que lhe gelam a alma

Levanta-se a luz de um novo dia
e nós
esquecidos do que sabemos
sorrimos para a vida




HENRIQUE RISQUES PEREIRA, Transparência do Tempo



(Editora: Quasi Edições)