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terça-feira, 5 de dezembro de 2023

António Amaral Tavares - "Os Nomes dos Pássaros" (2017)





Vi fantásticas asas necrófagas a fazerem aqui o ninho.


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Nunca soube os nomes
dos pássaros ou são poucos
os que conheço.

A luz concreta dos nomes
torna os pássaros mais reais
encerra-os no muro da palavra.

Verdadeiramente retiro-me

entre o nome e a surdez
e chamo pássaro a todas
as criaturas voadoras

que a cru manuseio no tronco
e que só identifico como tal quando
já mortas ou moribundas

como sempre foi.



ANTÓNIO AMARAL TAVARES, Os Nomes Dos Pássaros




(editora: Língua Morta)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

 Maria do Sameiro Barroso - "Luna Visibilis"


"Luna Visibilis" é um texto (poema) da escritora portuguesa Maria do Sameiro Barroso (n. 1951). Faz parte do livro «As Vindimas da Noite», publicado em 2008.




LUNA VISIBILIS


Em todas as respostas, há anjos que debicam a morte
e estrelas que se espalham,
nas suas paisagens de coros invisíveis.
Na geleia do mar, na sua placenta obscura,
nos limos viscosos, há sítios onde os rios se banham,
sementes que deslizam, entre sons que nada dizem
e letras que se bifurcam,
abrigando a montanha, a casa, os candelabros,
o fogo flutuando, impaciente,
o rosto procurando o passado , o presente,
na miragem de cristais fosforescentes.

Nas dunas fendidas, lâmpadas de anil evocam o sopro,
a chama calcinada, a memória da neve.
Nos óvulos verdes, há vagens, alfarrobas,
prados infinitos, rebanhos que guardam o medo.

Em todas as respostas, há arcos leves, árvores
odorosas, sombras que respiram,
e dedos moldando os troncos, os rios e o coração,
aberto no fragor sincopado que lavra
a inquietude, o hermético lume, o ardor
que desvenda, nos seus interstícios salgados,

a espuma, a solidão, o vento roxo.




MARIA DO SAMEIRO BARROSO, As Vindimas da Noite

terça-feira, 19 de setembro de 2023

 Dino Campana - "Cantos Órficos" (2021)




Em Novembro de 2021 coloquei aqui o texto “Sonho de Prisão” do autor Dino Campana, texto que também faz parte deste livro «Cantos Órficos», originalmente publicado em 1914. Nessa altura ainda não me tinha chegado às mãos o livro completo. Esta edição (com tradução diferente do post “Sonho de Prisão”) é a única que conheço actualmente disponível (em português), e embora não tenha qualquer texto para lá do autor, inclui uma parte intitulada «Vários e Fragmentos» que, presumo, não terá entrado na edição original de 1914, o único livro publicado em vida pelo autor. É um excerto de um texto (intitulado “Viagem de eléctrico na América, e regresso”) dessa mesma parte do livro que aqui incluo.



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Ouço novamente o prelúdio desafinado das rudes cordas sob o arco de violino do eléctrico dominical. Os pequenos dados brancos sorriem sobre a costa, formam um círculo como uma dentadura, entre o fétido odor de alcatrão e de carvão misturado com o nauseante odor do infinito. Fumam os barcos a vapor nas docas desoladas. Domingo. Pelo porto cheio de carcaças as lentas fileiras humanas, formigas do enorme ossário. Enquanto entre as tenazes do cais estremece um rio que foge, taciturno cheio de soluços calados, foge veloz em direcção à eternidade do mar que se entretém e conspira lá em baixo para romper a linha do horizonte.



DINO CAMPANA, Cantos Órficos,  (tradução de Tomás Sottomayor)




(editora: Flâneur)

sexta-feira, 28 de julho de 2023


 XIII


Aquele passa inválido para sempre
como se tivesse sido lobotomizado por deus
do corredor C sai alguém para uma dor gigante
como o caixão de Robert Wadlow
daqui já ninguém vai para a terra dos Hiperbóreos
onde se vivia mais que um tubarão-da-gronelândia
dos predadores com espinhas que comem o juro
arrotar a Morte teimosa em Atahualpa
os golfinhos aterrorizados na baía infeliz em Taiji
este oceano é uma enorme garrafa de xarope de groselha
grunhidos de matadouro correm como bolas de snooker
cair num buraco com Endríaco no Santo Ofício
a esplanada é o garrote antes do fogo
Íblis segura a bandeja em forma de ampulheta
sai mais um torturado para o prato de Zeus
deixar o mamífero atolado no próprio excremento até ao fim
descemos o Vesúvio de mão dada com Plínio de mãos na cabeça
surpreendidos pela Morte às cotoveladas
os lóbulos às silvas pelo Stuka alarmista
Marx atingido por um Domovoi de ficar por casa
corpos como iogurte de pedaços
somos Dorian Gray a apodrecer em hipocondria
neste susto de Morte há Górgonas na fotografia Kirlian
um exército interminável de empedernidos
ficamos como os soldados em fila indiana para Shi Huangdi
atirados à mortandade num outro mundo como este
toma o veneno dos ratos Tchaikovsky
leva um tiro no córtex Métis
para a aula com leite mártir na mochila
a inocência sob um fundo negro de Caravaggio
foge com vontade de morrer
corre à frente dos robots Actéon
cai Gomorrense às balas de deus
para a Cruzada criança
para a Morte e a servidão
como potros selvagens retirados às mães.



Miguelsalgado, AQUERONTE

quarta-feira, 5 de julho de 2023


Sócrates:


A dose letal caiu aqui: chegou até aqui não sei como: veio até aqui não sei donde. Poderei ainda atirar este veneno para longe mesmo estando já em mim? Pergunto-me para que lado vou cair quando cair no último acto: cairei para lado algum? A quem estará destinada a infelicidade de lavar este morto detestado? Só sei é que nos últimos tempos só apanho as ondas sonoras dos presos. Questiono os deuses e não há respostas: ficam à distância, mais quietos que uma estátua de Fídias. Sou obrigado a desligar-me: uma vida sem a minha música é uma vida que não vale a pena ser vivida.



Miguelsalgado, AQUERONTE


segunda-feira, 12 de junho de 2023

 Before The Rain - "Frail" (2011)








“O Universo afigurava-se-me como uma espécie de grande gaiola, ou melhor, uma espécie de prisão enorme; o céu, o horizonte, pareciam-me muros para lá dos quais algo deveria haver, mas o quê? Estava no meio de um espaço imenso, todavia fechado. Ou melhor, parecia-me uma espécie de enorme barco do qual eu me encontrava e cujo céu era assim a modos que uma grande tampa. Éramos uma chusma de prisioneiros.”



EUGÈNE IONESCO, O Solitário (tradução de Luiza Neto Jorge)






quarta-feira, 24 de maio de 2023


 XII


Esticar os braços e não chegar
entorpecemos como os gigantes de Papini no jardim
onde a muralha de Camelot se desfaz ao suspiro
extinto no Cristo vermelho por Lovis Corinth
religioso no diário louco em Gogol
Penitência de Canossa que se impõe
pómulos sem algodão 
arroz como inquietas suricatas no Kalahari
o fundo do tacho raspado como os lares desta República Platónica
presos a uma Atlântida afundada
esta é a água que se agita sem sentido 
depressão nos charcos de suor em Arcádia
o amrita a escorregar das garras que Paracelso encravou
salta Hanuman para o clube dos poetas mortos
Miguel de Molinos nos membros agarrados à Morte inquieta
abraço venenoso para um Laocoonte que vê a cilada na existência
enquanto Goya esvai fuzilamentos pelas orelhas de Maio
onde o calor é mais intenso perto da luz que ilumina os mortos.




Miguelsalgado, AQUERONTE

quarta-feira, 10 de maio de 2023


Rosa Luxemburgo:


Sou com algemas: sacudo braços nos braços de empregados que magoam. Estou sem palco: apelar à paz é lançar a guerra. Ombros largos dissolvidos pela prisão umbrosa, clavículas com arte a dispersarem-se como migalhas sopradas: pessoas de partido igual afastam-se porque sim. Nunca mais a mão passará no pêlo do gato sossegado: para onde vou de mordaça? Querem o meu suor nas escadas como se não mancasse. Estou sem protesto: as pulsações a morrer às mãos de empregados que magoam. Sou para a necrópole: o que ainda podia ser já não será. Matamo-nos uns aos outros como anjos. A paz é sempre podre. Onde caio é feio: bonecas sem pernas e lodo poluído como manta.



Miguelsalgado, AQUERONTE


quarta-feira, 26 de abril de 2023

 Miguelsalgado - "AQUERONTE" (2023)




XI


Nelchael não diz nada
está mudo como Liv Ullmann em A máscara
a cara de Eurídice a pintar de preto o branco da passadeira
para o lugar onde Arcimboldo faz do nariz de Cleópatra uma áspide
cheiro a miocárdio com frio no alto dos Astecas
pelo verde luxuriante uma facada de Cortés na jugular
Syrinx a pedir boleia à ambulância mestiça
Apolo a esfolar vivo quem vive a música de pernas para o Elísio
desaparecemos com Pã por entre dentes chumbados e membros com gesso
com quadras de Augusto dos Anjos atiradas ao diafragma assombrado
a receita amorosa no Grande Alberto noutro aterro
Mussorgsky no robe resignado ao Hospital da Morte
noite claustrofóbica a acender Poveglia 
Müntzer desliza pelas mãos e pés nos pregos envelhecidos
luta presa em Valhala
Ragnarok nos leucócitos 
evaporação para lá do osso em Midgard
somos arqueólogos a cair pela maldição da múmia
o pó das contas bancárias esvaziadas num sorvo
como a garrafa de Poe
unhas na valeta onde despontam os crisântemos em Perséfone
auréolas e tudo pelo inferno adentro
abismos de porta larga como rectângulos de Rothko
a passear-se como um Urisco na cidade caída
poetas por Outono
a hora de Dumuzi reconhecer o mundo inferior.



(editora: artelogy)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Son Frère ("O Seu Irmão") -  Patrice Chéreau (2003)






    Conta-se que há uma raça de cavalos que, quando perseguidos, abrem por instinto a si próprios uma veia com os dentes, para poderem respirar mais livremente.
    Era também isso que eu queria: romper uma veia para alcançar a liberdade eterna!


GOETHE , Werther (tradução de João Teodoro Monteiro)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Marosa di Giorgio - "Passagens de um Memorial" (2022)





"Passagens de um Memorial" é uma antologia, uma escolha de textos que abarca a totalidade da obra poética da escritora uruguaia Marosa di Giorgio (1932-2004), uma obra que se move num universo muito próprio, muito marcado pela ligação à terra, à natureza e sua obscuridade.


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    Os cogumelos nascem em silêncio; alguns nascem em silêncio; outros, com um breve grito, um leve trovão. Uns são brancos, outros cor-de-rosa, este é cinzento e parece uma pomba, a estátua de uma pomba. Outros são doirados ou roxos. Cada um traz -- e isso é que é terrível -- a inicial do morto donde procede. Eu não me atrevo a devorá-los; essa carne levíssima é parente nossa.
    Porém, surge na tarde o comprador de cogumelos e começa a colheita. A minha mãe anui. Ele escolhe como uma águia. Este branco como açúcar, um cor-de-rosa, outro cinzento.
    A mãe não percebe que vende a própria raça.



MAROSA DI GIORGIO, Passagens de um Memorial  (tradução de Miguel Filipe Mochila)

 


(Editora: Cutelo Edições)