António Ferreira - "O Comboio de Lúcifer" (1997)
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Milreu
A nuvem negra na mão, os folhetos de cordel esquecidos no bornal, altero a mancha da página onde crescem os dias e tudo o que está para vir. O futuro perde-se nas artes sombrias da adivinhação, engolfa todo o presente até ao último alento, as zonas voláteis do passado aguardam na pilha de negativos a vez da revelação, o verbo redentor que as devolve ao nada que foram, ao pouco que somos, no gris das manhãs. No ventre dos cafés, a patine dos taipais, o ocre feroz dos cartazes, erguem-se como marcos à alma das cidades, à pressa de partires, à sina de regressares, o tédio como norte magnético, os olhos esquecidos da luz, presos à fonte para onde correm as trevas.
ANTÓNIO FERREIRA, O Comboio de Lúcifer
(Editora: Assírio & Alvim)