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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

 

XIV


Colapso nas unhas de Narciso
que faz zapping sem encontrar imagens às quais se fixar 
Alice ao espelho e do outro lado não há nada
e no entanto Galileu estende um lençol no caixão
giramos velhos tristes à volta do sol infantil com cara contente
a revolução acaba
o sonho em Lavoisier escondido na bouça louca
caímos tortos na banheira pequena onde Marat esgadanha
somos Melusinas a esconder deficiências
a água que segue suja pelos andares abaixo
o ouvido na canção monocórdica vinda do andar acima
Ícaros em queda livre desde o nascimento
para o fantoche alinhado na rocha dos Torajas
Krakatoa expele tripas doces
Vasco da Gama mutila o sal da goécia
a madeira no convés corada
respiramos maresias repletas de escravos em cadeiras giratórias
para atirar borda fora O navio negreiro de Turner
desaparecer na mesma névoa que engole o Graal
Nietzsche dinamita-se crucificado 
está o pensamento na mesma névoa que engole Avalon
o Génio da Lâmpada não pontapeia Mordred
o Corno de Amalteia não cai na nossa varanda
pedalamos como pulgas de Pan-Gu para o pêlo de ratos sem encosto
enquanto Aton bate a punheta da vida
morrer a cair na solidão destas esquinas erguidas por Chirico
caminhar na praça onde a pomba da paz caga no âmago dos mortos.




Miguelsalgado, AQUERONTE

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

 Music In Low Frequencies - "Catharsis" (2023)








Pára, sangue, de correr,
de ressaltar aos borbotões,
de me inundar como torrente,
de me brotar sobre o flanco.
Como contra uma parede,
imóvel como uma sebe,
lírio marinho direito
como espadana na espuma,
como pedra no talude
e o recife na corrente.
Sangue, sangue, se o desejo
te faz correr com tal força,
circula dentro da carne,
abraça-te aos ossos vivos.
Belo, belo que é correr
na obscura pele compacta,
sussurrando nas artéria,
murmurando contra os ossos.
Pára, sangue, de correr
sobre a  fria terra morta.
Não corras, leite, no chão,
sangue inocente no vale,
beleza humana entre a erva,
oiro de heróis na colina.
Desce fundo ao coração,
bate surdo nos pulmões,
desce, desce fundamente
aos órgãos vivos do corpo.
Não és rio que se escoe,
nem calmo lago parado,
nem fonte que brote assim,
nem barca velha com rombos.





Oração mágica finlandesa para estancar o sangue das feridas (tradução de Herberto Helder)









quarta-feira, 18 de setembro de 2024

 Hilda Doolittle - "Eurídice"


Em 2022 havia colocado aqui um texto da autora Hilda Doolittle (1886 - 1961), e agora lembrei-me de colocar um outro, desta vez a parte III do poema "Eurídice" (o texto original tem 7 partes e foi publicado em 1917). Hilda Doolittle assinava com o pseudónimo H. D.




III

 

Açafrão das margens da terra,
açafrão bravo que se reclinou
sobre a acerada extremidade da terra,
todas as flores que laceram a terra,
todas, todas as flores se perderam;
 
tudo está perdido,
tudo está riscado de negro,
negro sobre negro
e pior que negro,
essa descolorida luz.

 



H. D., do poema Eurídice (tradução de Filipe Jarro)


sexta-feira, 26 de julho de 2024


Elizabeth Bathory:


A noite são peles mortas como vampiros secos: de dia magoo-me nos fios de luz. Nunca rezei para que a parede fique em coma mas é esse o meu sonho. Hoje faço 1000 anos: amanhã 1001. Seguro uma balada fúnebre com os caninos domesticados. Há um murmúrio que castiga, uma tigela prateada que é desespero, como levantar-me e andar para trás e para a frente com piolhos sem sair do sítio: quando caio fico a ocupar a prisão toda. Queria mais sono e menos cheiro a excremento: a que distância está o meu caixão? Não atravesso as paredes no sono, nem da primeira vez em que andei de bicicleta vi o vómito nos atacadores da minha mãe: tenho saudades de ter alguém que me tire os piolhos. Quem se lava na banheira sai de lá com outro sangue, se saísse daqui queria uma limousine preta à minha espera: tenho ossos claramente paralíticos. Já nem vou aos cemitérios: nem atiro o peso do cadáver pela ribanceira. Quantas rugas ganhei desde que aqui estou? Estes braços ainda querem secretamente pegar em bebés, mas quem só tem parede à volta não se pode levantar a meio do pesadelo para ir ao parque: vou contar as estacas que revestem as paredes e deixo de buscar com os dedos algo de novo na cara: daqui a bocado vou ter as escleróticas vermelhas, mais um bocado e a luz cega: ficar sem saber o que é noite, o que é dia. Estas paredes permanecem: amplificam a casa do terror. Quantas rugas ganhei desde que aqui estou?




Miguelsalgado, AQUERONTE


sexta-feira, 5 de julho de 2024

 "Tony" - Gerard Johnson (2009)





“Só nos arrependemos daquilo que não estamos habituados a fazer. Repetindo com frequência aquilo que nos causa remorsos, acabamos por aniquilá-los.”




MARQUÊS DE SADE, Justine (tradução de Adelino dos Santos Rodrigues)



terça-feira, 28 de maio de 2024

 António Ferreira - "O Comboio de Lúcifer" (1997)







O comboio vai às escuras. Lúcifer é atirado fora em andamento.



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Milreu



A nuvem negra na mão, os folhetos de cordel esquecidos no bornal, altero a mancha da página onde crescem os dias e tudo o que está para vir. O futuro perde-se nas artes sombrias da adivinhação, engolfa todo o presente até ao último alento, as zonas voláteis do passado aguardam na pilha de negativos a vez da revelação, o verbo redentor que as devolve ao nada que foram, ao pouco que somos, no gris das manhãs. No ventre dos cafés, a patine dos taipais, o ocre feroz dos cartazes, erguem-se como marcos à alma das cidades, à pressa de partires, à sina de regressares, o tédio como norte magnético, os olhos esquecidos da luz, presos à fonte para onde correm as trevas.






ANTÓNIO FERREIRA, O Comboio de Lúcifer


(Editora:  Assírio & Alvim)

sexta-feira, 26 de abril de 2024

 Rezn - "Chaotic Divine" (2020)





Um caminho de sombra irrompe 
por entre os escombros.
Um deserto, um fio de água
dentro da boca do homem,
um pão que brilha no solo
entre o fogo e as pedras
tatuadas de rugas e silêncio.

Há uma estrela insubmissa
no caos da tua noite. Um caminho
ainda verde, pulverizado
por entre os escombros.



CASIMIRO DE BRITO,  Jardins de Guerra (poema "O Caminho")







terça-feira, 19 de março de 2024

 Sebastião Alba - "Albas" (2003)






Livro que reúne vários textos (cartas, poemas, pensamentos,…) dispersos (a maior parte do que escreveu não foi publicado em vida), escritos, muitos deles, creio, numa fase em que Sebastião Alba (1940 - 2000) já vivia como sem-abrigo. O livro inclui também manuscritos, fotografias e uma importante introdução sobre a vida e obra do autor.




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27/11/83

Meu Deus, eu não tenho medo de ti, mas das tuas criaturas, de mim. Como foste capaz disto: de nos assustar?



/138/

Em cada manhã travo uma luta, que eu sei perdida, com o demónio do álcool. Mas ele é cada vez mais do meu tamanho.
Mas ouve a voz do pai: “Se continuas assim, não duras 6 meses”; a do João, nosso primo: “qualquer dia alguém me diz que foste encontrado aqui numa valeta”. E estão mortos. Lembras-te do que dizia um grande escritor francês, Albert Camus? “A morte é um acontecimento que me dá razão”. Sabes o que o Camus queria significar com aquilo, ele que, já Prémio Nobel da Literatura, morreu num acidente de viação, contra uma árvore? Vão-se lixar.





SEBASTIÃO ALBA, Albas


(editora: quasi edições)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

 Henri Roorda -  "O Meu Suicídio" (1993)





Publicado originalmente em 1925, com o título “Mon Suicide”, esta obra do escritor suíço Henri Roorda (1870-1925) é uma reflexão, em larga medida uma crítica, da vida humana, da vida humana em sociedade, um olhar, irónico, mordaz, necessariamente dramático, sobre si próprio, um balanço de vida, uma explicação para a via suicida.

Mais recentemente, em 2020, saiu um nova edição pela editora Snob


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Vou meter uma bala no coração. Far-me-á de certeza doer menos que na cabeça.
Não temo o que me aconteça depois, porque tenho fé: sei que não vou comparecer diante do Juiz Supremo. Só na terra é que há «tribunais cómicos».
Não obstante, irei comover-me. Para estar mais à vontade, vou beber uma meia garrafa de Porto velho.
Se calhar vou falhar. Se as leis fossem feitas por homens caridosos, facilitava-se o suicídio aos que querem ir.




HENRI ROORDA, «O Meu Suicídio» (tradução de Rui Caeiro)




(editora: &etc)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

 Frayle - "Skin & Sorrow" (2022)








As flores crescem
e são arrancadas para murchar
Admiram-se numa jarra
num prazer inconsciente
de olhar até morrer



ÓSCAR MANUEL DE CARVALHO, Plenitude da morte ao contrário (do poema “Lu(z) em campos de Primavera)