Dino Campana - "Cantos Órficos" (2021)
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Ouço novamente o prelúdio desafinado das rudes cordas sob o arco de violino do eléctrico dominical. Os pequenos dados brancos sorriem sobre a costa, formam um círculo como uma dentadura, entre o fétido odor de alcatrão e de carvão misturado com o nauseante odor do infinito. Fumam os barcos a vapor nas docas desoladas. Domingo. Pelo porto cheio de carcaças as lentas fileiras humanas, formigas do enorme ossário. Enquanto entre as tenazes do cais estremece um rio que foge, taciturno cheio de soluços calados, foge veloz em direcção à eternidade do mar que se entretém e conspira lá em baixo para romper a linha do horizonte.
DINO CAMPANA, Cantos Órficos, (tradução de Tomás Sottomayor)